quinta-feira, 21 de junho de 2012

tubarões fossilizados em Santa Maria

21-06-2012 - 17:32

Os tubarões fósseis de Santa Maria


Sérgio Ávila | Biólogo
Tinha acabado de fazer oito anos em Novembro de 1975, quando o meu pai me levou ao cinema para vermos o filme "O Tubarão". Como eu gostava muito de livros e documentários relacionados com a Natureza, penso que ele terá escolhido aquele filme pensando tratar-se de um documentário acerca de tubarões. Lembrem-se que não havia "trailers" naquele tempo. Escusado será dizer que, durante alguns dias, andei com pesadelos... Realizado por Steven Spielberg e lançado nos EUA a 20 de Junho de 1975, este filme foi o primeiro "blockbuster" da história de Hollywood. Com efeitos especiais ainda muito incipientes e com falhas de funcionamento no tubarão mecânico utilizado, o filme alicerça grande parte do seu êxito nos efeitos psicológicos decorrentes da apropriada utilização de uma banda sonora de eleição, à semelhança do que fazia Alfred Hitchock.
Desde tempos perdidos na bruma, que os tubarões despertam um misto de terror e fascínio nos humanos. Predadores de topo da cadeia alimentar marinha, estes animais caracterizam-se por possuírem uma boca ventral, barbatanas com grande mobilidade, sistemas sensoriais capazes de detectar substâncias muito dissolvidas na água, e um olfacto e ouvido extremamente apurados - por exemplo, conseguem detectar uma gota de sangue a 300 m de distância!. O seu corpo alongado e fusiforme está recoberto por dentículos dérmicos (as escamas placóides) orientados para a parte posterior, reduzindo o atrito da sua deslocação na água, o que permite, a algumas espécies, atingir velocidades espantosas da ordem dos 50 km/h!
O recente livro dos biólogos João Pedro Barreiros e Otto Bismarck Gadig (Catálogo ilustrado dos tubarões e raias dos Açores), editado pelo Instituto Açoriano de Cultura, reporta 37 espécies de tubarões actuais, para os mares dos Açores. Sendo ilhas oceânicas, é natural que estes animais, na sua maioria pelágicos, sejam relativamente comuns no nosso Arquipélago. O que já não é tão comum é encontrar fósseis de tubarões em ilhas oceânicas. Nos Açores, só são conhecidos numa ilha: Santa Maria.
A ilha de Santa Maria é a mais antiga dos Açores (entre 8 a 10 milhões de anos), é aquela em que há mais tempo (cerca de 2 milhões de anos) não se registam erupções vulcânicas, e é a única ilha dos Açores que esteve (e provavelmente ainda está) em processo de soerguimento relativamente aos fundos oceânicos em que assenta. Esta conjugação de processos (ou de falta deles...) explica porque é somente nesta ilha que são conhecidos fósseis nos Açores. Desde 1998 que os restos e as marcas de organismos pretéritos (alguns já extintos) são o objecto de estudo de uma equipa multinacional e multidisciplinar, liderada por investigadores do CIBIO, o Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos e do InBIO Laboratório Associado (Pólo dos Açores), um grupo de investigação com sede no Departamento de Biologia da Universidade dos Açores. A partir de 2005, workshops internacionais financiados pelo Governo Regional dos Açores e pela FCT (Fundação para a Ciência e a Tecnologia) têm sido efectuados com uma periodicidade anual em Santa Maria, com o intuito de revelar à comunidade científica os mistérios que aquela ilha encerra, ainda enterrados nos seus sedimentos fossilíferos. Muitos têm sido os segredos já decifrados: em 2003, um estudo pioneiro permitiu a classificação do primeiro Monumento Regional dos Açores (a Pedreira do Campo e as grutas do Figueiral); em 2007, pela segunda vez a nível mundial, foi publicado um estudo acerca de cetáceos fósseis encontrados em ilhas oceânicas; em 2008 foi publicada uma teoria biogeográfica e ecológica com aplicação global, explicando o porquê de as praias de areia em ilhas oceânicas serem praticamente desprovidas de vida; em 2009 foi publicada uma hipótese de trabalho explicando não só as razões das elevadas semelhanças biogeográficas da fauna marinha costeira dos Açores com a existente nas costas Europeias e Mediterrâneas, mas também (e especialmente) os mecanismos explicativos bem como os prováveis intervalos temporais de chegada de novos colonizadores às ilhas dos Açores, concentrados em determinadas "janelas de oportunidade".
O estudo de base taxonómica, ou seja, aquele em que (por vezes) se efectua a descrição de novas espécies, assim permitindo o conhecimento detalhado das paleocomunidades, por regra é mais demorado, tendo tido o seu início em 2002, com a publicação da primeira lista de espécies dos moluscos marinhos Plistocénicos de Santa Maria, provenientes das jazidas mais recentes de Santa Maria, com idade entre os 120.000 e os 130.000 anos. Este estudo foi complementado com novas e mais detalhadas revisões, publicadas em 2005, 2007, 2009 e 2010. A partir de 2007, a multidisciplinaridade da equipa envolvida (já terão passado por Santa Maria mais de 50 investigadores, durante as 8 edições já realizadas dos workshops "Paleontologia em Ilhas Atlânticas") permitiu a publicação de estudos acerca de diversos grupos animais: os já referidos cetáceos fósseis, em 2007; braquiópodes em 2008; moluscos gastrópodes Pliocénicos (com cerca de 5 milhões de anos) em 2008; crustáceos em 2010, com a descrição de uma craca endémica, já extinta; os equinodermes (ouriços-do-mar) em 2011; e os tubarões fósseis de Santa Maria, objecto desta notícia, no corrente ano.
A existência de fósseis em contexto de ilha oceânica e vulcânica, como o são todas as ilhas dos Açores, é sempre uma raridade. Mas há uns fósseis que são mais raros do que outros. Em Santa Maria, existem certamente milhões de fósseis de moluscos marinhos! Seguem-se, em termos de importância numérica decrescente, os briozoários (presentemente a serem alvo de uma tese de doutoramento), os equinodermes, os milimétricos ostrácodes (também eles a serem estudados no âmbito de uma tese de doutoramento), os crustáceos e os foraminíferos. Os tubarões fósseis são o segundo grupo de fósseis mais raro em Santa Maria, logo a seguir aos restos fósseis de cetáceos.
Embora sejam conhecidos desde 1950, altura em que 4 espécies (Notorynchus primigenius,Cosmopolitodus hastalisParotodus benedenii e Isirus oxyrinchus) foram dadas pela primeira vez na literatura científica para as jazidas fósseis de Santa Maria, por George Zbyszewski e Fernando Moitinho d'Almeida, ambos investigadores dos antigos Serviços Geológicos de Portugal, a raridade deste tipo de fósseis é real pois, não obstante o esforço de mais de 50 investigadores e alunos, representando centenas de horas/homem de pesquisa, somente são conhecidas 7 espécies, tendo sido recolhidos menos de 50 dentes fossilizados de tubarões em Santa Maria, desde o início dos estudos paleontológicos nesta ilha, em 1860! Esta diversidade de espécies é, no entanto, notável, se tivermos em conta a reduzida dimensão da ilha de Santa Maria quando comparada com as raras ilhas oceânicas que no Atlântico também possuem fósseis de tubarões: Cuba (15 espécies), Jamaica (6-7 espécies), Carriacou (5 espécies) e Cabo Verde (2 espécies).
Com base no registo fóssil actualmente conhecido, podemos afirmar que a maior espécie de tubarão jamais conhecida, o Megaselachus megalodon, que se estima tenha atingido os 17 m de comprimento e uma massa corporal de cerca de 60.000 kg, terá coexistido com (pelo menos) outras 6 espécies de tubarões, nas águas Atlânticas mais quentes do que as actuais, que há cerca de 5 milhões de anos banhavam a única ilha (Santa Maria) do então futuro arquipélago dos Açores.
Muito mais resta por descobrir nos sedimentos fossilíferos de Santa Maria, que todos os anos nos tem surpreendido com novidades científicas. Esperemos que a tradição se mantenha no 9º workshop internacional "Paleontologia em Ilhas Atlânticas" que em Julho próximo reunirá em Santa Maria cerca de 20 investigadores.



Notorynchus primigenius (Agassiz, 1835). 1. Dente inferior anterolateral (colecção do Liceu Antero de Quental: 23,5 mm comprimento). 2. Dente inferior anterolateral (colecção do Instituto Geológico e Mineiro/Museu Geológico: 16,0 mm comprimento).


Megaselachus megalodon (Agassiz, 1835). Vista lingual (1), lateral (2), e labial (3). Dente da colecção particular do Professor Doutor Victor Hugo Forjaz (altura = 88,3 mm, largura = 74,5 mm)

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