sábado, 15 de outubro de 2011

crónica de Concha Rousia XVI Colóquio da Lusofonia: Santa Maria

Portas 

Há quem diga que as portas duma ilha são infinitas, há quem diga que uma ilha não tem portas, e ainda há quem, como eu, diga:

‘A saudade é uma porta aberta que me separa de ti’

Escrevi essa frase durante a minha estadia na Ilha, talvez por isso o título desta minha crónica, talvez, só talvez... As portas da Ilha abriram-se todas para mim sem eu ter sequer que bater nelas; hoje enquanto falo em portas, a imagem primeira é uma na que as mãos do José Nuno da Câmara Pereira passeiam as nuvens permitindo ao sol ir-se filtrando entre os seus dedos para perpetuar sua luz nas, indescritivelmente belas, obras; ele, artista plástico que tanto nos comoveu e eu denominei ‘escultor de almas’... ele, junto da Ana Loura, uma druidesa que também habita o bosque das imagens nessas ilhas misteriosas, e junto do Henrique Constância, o jovem que consegue atar as nuvens que o José Nuno recoloca no céu, com as cordas do seu violoncelo, ao que, como dizemos na Galiza, o Henrique faz falar... Eles três foram a descoberta mais inimaginável que encontramos na ilha... 
 
Depois que eu escrevi a mencionada frase da saudade, perdi o meu caderno de viagem e interpretei que aquilo era uma troca, uma troca com a ilha de Santa Maria, eu deixava lá meus pensamentos semeados, e a ilha se iria semeando em mim sem eu ter que fazer qualquer anotação... Então reparei no céu, esqueci o papel, nunca antes tinha reparado tanto no céu, a luz é aqui uma verdadeira deidade que vai criando milhões de ilhas diferentes ao longo do dia...

Hoje abro o meu dia aqui, na minha casa de pedra, com a música ‘Ilhas da bruma’ a brotar do piano da Ana Paula, acompanhada pelo violoncelo de Henrique Constância e a voz alada da Raquel Machado... E a surpresa grande é ver que Santa Maria, como já antes tinha feito São Miguel, a ilha, esta também, viajou secretamente em meu interior, agora aqui sai e coloca-se toda à minha volta enquanto eu levo na mão as três pedras que dormiram comigo na ilha, mesmo quando eu perdia o sono, elas dormiam... 

Os Açores fazem meu
O mundo que me pertence
Mas do que eu perdera
A porta pela que entrava...

A Santa Maria acolheu-me com olhares, mesmo que escassos, profundos, que me faziam lembrar doutros tempos meus, mais antigos, e também mais humanos. Os Açores causa em mim uma emoção tão profunda que eu nem sei como interpretar. Santa Maria deixou em mim uma grande melancolia; esta ilha é como um mundo perfeito, ora muito desabitado, soube depois que a maioria das casas permanecem vazias e só é nas férias que as portas das casas se abrem; com efeito quase todas as portas permaneciam fechadas dia após dia. No coração da ilha a ‘Taberna central’ sempre aberta com a Gertrudes mostrando seu triste sorriso... Ela já viu partir tanta gente para fora da ilha... Incluídos os filhos, e nem sempre para voltar. Tive o privilégio de ser convidada por ela a um vinho de cheiro autêntico, no meu dia de anos... Como se pode ver na fotografia que o nosso incansável Rolf tirou de nós duas juntas, esse foi o meu primeiro brinde nesta nova idade, depois à noite veio a festa que agora também quer ser lembrada, com tantos amigos, com tantas vozes, com a Fátima e a Catarina, a encher tudo de harmonia, com esses parabéns que se gravaram ao som da internacional em mim... A festa foi no mesmo lugar onde duas noites o Chrys nos deleitou com a sua dança aborígene para celebrar a sua nova idade... 

Nesse contesto altamente emotivo, os Colóquios da Lusofonia encontraram seu território para ser pátria física durante uns dias, pelo menos para ser pátria para mim, que sou de um país sem portas, um país ao que se lhe foram fechando as suas saídas; mesmo durante o transcurso dos Colóquios chegou a mim a notícia de que mais um jornal, dos poucos que usava a nossa língua, fechava definitivamente, já quase não resta nada por fechar... Então o vivido nestes Colóquios em Santa Maria, será muitas vezes, ao longo do ano, refugio para mim, que revisito cada lembrança destes dias nos que o hino da Lusofonia é o meu hino... E canto, e me encanto, porque ele me inclui, é difícil para mim transmitir o que isso, verdadeiramente, significa. Durante os dias que dura o Colóquio, as comunicações científicas vão-se alternando com os passeios pela ilha e com as sessões culturais... Tudo eu guardo junto e agora aparece-me aqui os conceitos linguísticos junto das músicas, os poemas, a sopa do Espírito Santo, que tanto me fez lembrar a nossa ‘carne ao caldeiro’, e o canto dos foliões a seguir a comida, para arrepiar a pele a qualquer ateu de deuses que acredite nos povos...

Aparecem logo as imagens do Museu de Santa Maria, que contam a história da ilha com objetos antigos e fotografias, tive o privilégio de assinar o livro de honra (tudo que se me outorga, não é a mim que se outorga, é a Galiza, eu sei, e gosto de que assim seja). A escola onde as crianças, talvez protegidas pelo mar, contrastam com as do continente, aqui parece que ainda escutam aos adultos, para as crianças falamos e elas guardaram silêncio, fiquei impressionada por essa atitude, admirei-as. Talvez a quem tenha que admirar seja aos adultos pois, sabido é, que as crianças são apenas reflexo. Então isso fala muito bem desta ilha. Adorei as crianças em Santa Maria, tinha que dizer isso. Hoje toda a ilha se passeia por mim devolvendo-me a visita que eu lhe fiz a ela primeiro, sua pele verde decora os negros pensamentos que se precipitam sobre mim ao contemplar esta Galiza, nossos jornais fecham, nossas crianças barulhentas falam numa língua que mata a nossa, e nós morremos com ela...

No meio desses pensamentos, aos que eu desejo colocar portas para que não fujam sem serem resolvidos, aparece a voz do Vasco Pereira da Costa lendo um poema do nosso Celso Emílio, um poema que me foi dedicado... Como não sentir-se em casa! Agora aqui, aos pés de Compostela, é que me custa achar meu lar, e compreendo bem a Guerra da Cal... Quem não desejaria viver numa pátria que não esteja ameaçada...? Isso são os Colóquios para nós, para mim, uma pátria de portas infinitas, onde cabemos tal e qual somos, e até por sermos... E chegou agora a mim a imagem do Eduardo, esse poeta, mistura de mudos quase indecifráveis, retratado pela Ana Loura enquanto trata de captar a magia do Poço da Pedreira, lugar que hoje é quease um santuário, e um dia fora lugar de rachar pedras para fazer pontes e casas e paredes para que o vento não leve os cultivos, fora um lugar desde o que se construíram mundos... E agora ouço em mim o som do cagarro, com seu choro de criança desconsolada, que tão bem apresentado nos foi pela Joana Pombo no museu que cuida da obra feita pelo seu avô, Dalberto Pombo (ao que o meu inconsciente insiste em chamar João Pombo, sei que é por eu identificar tanto a neta com o avô). E no final descendo as escadas com a calma toda do mundo, vem o Daniel de Sã, tratando de entender aquilo que o Chrys chamou ‘As ruínas do Daniel’ Assim é o Chrys gosta de ir às raízes das que ainda bebe a alma do escritor... 

Subindo no céu, hoje sem fume, porque não nem estamos nas férias nem no inverno, as chaminés de vapor que dos barcos se passaram para as casas e substituíram as chaminés tradicionais de ‘mãos postas’ numas casinhas todas pintadas de branco, exceto por uma franja que emolduram as janelas e a porta; em cada freguesia com a sua cor, se eu vivesse, possibilidade que não descarto, lá teria que morar nas de cor rubra... E por lembrar a cor do barro, lembrei agora a visita na que tivemos ocasião de apreciar essa cor e essa paisagem no Barreiro da Faneca, cujo nome não faz referência ao peixe e sim a medida do terreno, que nalguns lugares dizemos ‘fanega’. E as fanecas ou fanegas de pão eram escondidas em silos de pedra feitos ao invés dos nossos espigueiros, feitos na barriga da terra para ocultar dos corsários o grão de toda a comunidade, ainda agora só de imaginar o povo sendo um coletivo unido, me estremeço, fica o silo como um resto quase arqueológico... Desde esse mundo a hoje passou muito tempo, muito tempo em poucos anos...

E no céu, tocando as nuvens, a araucária, majestosa, ao pé da igreja, ela quase sacra; todas as mulheres fascinadas pelo tato desta árvore, na que eu deixei um abraço, regressamos a casa com uns frutos que ela generosa deitava no chão. Ainda teria que falar de como Cristóvão Colombo passou por Santa Maria, mesmo que não pusesse o pé em terra porque Isabel a Católica tinha-lhe proibido pisar território português... E da abusiva presença dos americanos, mesmo que viesse compensada pela visita de artistas que deixavam sua pegada na ilha: Frank Sinatra, Bill Cosby... E não sei quem mais. E o mar, sempre o mar, com seus infinitos caminhos. E no final as conclusões dos Colóquios, com os propósitos de futuro e com um comunicado de repudia à atitude negativa do ministro Portas na hora de aceitar a Galiza como parte da Lusofonia na CPLP, mesmo que fosse apenas como observadora... Mas essa porta foi-lhe fechada. E no último dia as despedidas, mas das despedidas eu ainda não quero falar... Quero é sonhar junto da Gabriela, o Chrys, e de todos os amigos da AICL para levar os Colóquios à ilha das Flores...

Concha Rousia
Galiza, 11 de outubro de 2011

(Em andamento, queria colocar fotografias da Ana Loura mas ainda não consegui...)  





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