terça-feira, 19 de julho de 2011

Um livro didático de Português que ensina a falar errado… Que explicações vão dar sobre isso?




Um livro didático de Português que ensina a falar errado… Que explicações vão dar sobre isso?


Por Mirella Cleto

Um dos volumes da coleção “Viver, aprender”, que consta do PNLD EJA 2011, foi apontado como “livro que ensina aluno a falar errado”, em matéria publicada pelo Portal iG. O que motivou o tratamento foi a presença de três frases no seu capítulo 1. São elas: “Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado”; “Nós pega o peixe”, “Os menino pega o peixe”. O que elas estariam fazendo em um livro didático de Português?

Descrevendo como se dá a concordância em uma determinada variedade da língua: a variedade popular – depois de já ter sido descrito como ela ocorre na variedade de prestígio. Em nenhum momento o capítulo se referiu à variedade popular como “errada”. Nem poderia, visto que a noção de erro, quando se descreve a língua, significa algo específico: “a ocorrência de formas ou construções que não fazem parte, de maneira sistemática, de nenhuma das variantes de uma Iíngua”. As palavras são de Sírio Possenti (professor no Departamento de Linguística da Unicamp), em seu livro Por que [não] ensinar gramática na escola (2008, 18ª reimpressão, Mercado de Letras). É ele quem esclarece:

“Uma sequência como “os menino”, cuja pronuncia sabemos ser variável (uzmininu, ozminino, ozmenino etc.), que seria cIaramente um erro do ponto de vista da gramática normativa, por desrespeitar a regra de concordância, não é um erro do ponto de vista da gramática descritiva, porque construções como essa ocorrem sistematicamente numa das variedades do português (nessa variedade, a marca de pluralidade ocorre sistematicamente só no primeiro elemento da sequência – compare-se com “esses menino”, “dois menino” etc.). Seriam consideradas erros, ao contrário, sequências como “essas meninos”, ”uma menino”, “o meninos”, “tu vou”, que só por engano ocorreriam com falantes nativos, ou então na fala de estrangeiros com conhecimento extremamente rudimentar da Iíngua portuguesa.”

Para os estudiosos da língua, trata-se de um consenso. Porém é sabido que não é essa a razão da polêmica em torno de um livro de Português voltado à Educação de Jovens e Adultos. A questão geradora de debate é o fato de existir um valor social agregado aos usos da língua (e de ser a escola o espaço privilegiado para seu aprendizado, ser o livro didático o recurso convencional para esse fim).

Nas palavras de Marcos Bagno (professor do Departamento de Linguística da Universidade Federal de Brasília):

“[...] do ponto de vista sociocultural, o “erro” existe, e sua maior ou menor “gravidade” depende precisamente da distribuição dos falantes dentro da pirâmide das classes sociais, que é também uma pirâmide de variedades linguísticas. Quanto mais baixo estiver um falante na escala social, maior número de “erros” as camadas mais elevadas atribuirão à sua variedade linguística (e a diversas outras características sociais dele). O “erro” linguístico, do ponto de vista sociológico e antropológico, se baseia, portanto, numa avaliação negativa que nada tem de linguística: é uma avaliação estritamente baseada no valor social atribuído ao falante, no seu poder aquisitivo, no seu grau de escolarização, na sua renda mensal, na sua origem geográfica, nos postos de comando que lhe são permitidos ou proibidos, na cor de sua pele, no seu sexo e outros critérios e preconceitos estritamente socioeconômicos e culturais.” [...]

O erro é uma moeda, e como toda moeda, ele tem duas faces: uma face linguística e uma face sociocultural. Como já disse, do ponto de vista estritamente linguístico não existe erro na língua, uma vez que é possível explicar cientificamente toda e qualquer construção linguística divergente daquela que a norma-padrão tradicional cobra do falante. Mas, do ponto de vista sociocultural, o erro existe, sim, e não podemos fingir que não sabemos do peso que ele tem na vida diária dos falantes.” (Fonte: artigo “Os dois lados dos ’erros de Português’ ”)

A coleção buscou aliar essas duas faces. Não desconsiderou a legitimidade de uma variedade popular, descrevendo-a segundo um critério intrinsecamente linguístico. Por outro lado, não ocultou as implicações de seu uso. Escrevem seus autores:

Você pode estar se perguntando: “Mas eu posso falar ‘os livro’?”

Claro que pode. Mas fique atento porque, dependendo da situação, você corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico. Muita gente diz o que se deve e o que não se deve falar e escrever, tomando as regras estabelecidas para a norma culta como padrão de correção de todas as formas linguísticas. O falante, portanto, tem de ser capaz de usar a variante adequada da língua para cada ocasião.

A liberdade para escolher demanda o conhecimento das possibilidades. Por isso, com a finalidade de tornar o funcionamento da variedade culta mais familiar ao aprendiz – jovem ou adulto –, foram propostos no capítulo que abriga essa discussão exercícios relativos a questões da língua escrita e da norma culta.

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