sexta-feira, 17 de junho de 2011

A história de um vocábulo de sete partidas…

A história de um vocábulo de sete partidas…
 
FETICHE- do fr. Fétiche, der. Do port. Feitiço (Clédat, Brachet, Stappers). G. Viana, Apost.I, 451, Vocabulário, entende que êste galicismo, bem arraigado aliás, deve ser subsituído por manipanso. “Le mot portugais feitiço (forme savante facticio) sest introduit dans le français sous la forme fétiche, et ainsi modifié est revenu dans le vocabulaire portugais, sans faire aucunement disparaître sa forme antérieure (A. Coelho, Romania, 1873, Formesdivergentes des mots portugais). Fernando Ortiz afirma que o vocábulo fétiche foi lançado na circulação pela famosa obra de Ch. De Brosses, Du culte des dieux fétiches ou Parallèle de lancienne religion de l Egypte avec la religion actuelle de Nigritie (1760), em cuja página 18 consta que a origem do português antigo fetiffo (?), da raiz latina fatum. Alega que segundo a Enciclopédia Britânica, o vocábulo já tenha sido usado e explicado pelo holandês Bosman (A new and acurate description of the coast of Guinea, trad. Ingl., Londres, 1721, pgs. 121 e seguintes). Acrescenta ainda que a palavra, escrita ás vezes fetifto e fetiftoes, aparece usada por ingleses no século XVII (The Golden Coast, or a description osf Guinney, anônima, Londres, 1665, pgs. 72, 76, 77, 78, etc).
Repositório da Universidade de Lisboa  http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/3127/2/ulsd60289_td_annexes1.pdf
 
Não há vez em que não dê três espirros seguidos ou se me parta uma unha sem razão aparente, que voz condoída me não diga que isso é obra de feitiçaria, bruxedo, feitiço, praga, mau olhado, inveja, quebranto, maldição familiar, etc., que nos dicionários ocupam muitas páginas as explicações para o mesmo malefício. Relativamente a esses fenômenos, considerados muitas vezes “sobrenaturais” , mas que com maior propriedade deviam ser considerados “imaginários” o que me desafia, é entender a possibilidade de alguém crer neles!
A Portugal coube ser a pátria linguística do “feitiço”. Um certo dia, provavelmente do século XIV, alguém, com imaginação e saber linguístico, tomou o vocábulo latino “factius” [artificial, manufaturado], reformou-o, transformando-o no adjetivo “FEETISSO”, com o mesmo sentido.
José Pedro Machado(filólogo, arabista: 1914 – 2005), transcreve do Boletim de Segunda Classe da Academia das Ciências de Lisboa o primeiro registo comprovativo da existência do termo: há de ter o dicto sancristam huum cesto grande feitiço em que andem os monges…
Fenômeno frequente  na vida das palavras, o termo evoluiu na forma, semanticamente e nas suas funções, e tornou-se fértil, dando origem, como Feitiço, a FEITICEIRO e FEITIÇARIA, já documentados nos éditos em que, em 1385 e 1405, D. João I proíbe os seus súbditos de “obrar feitiços ou ligamentos ou chamar diabos”.
A história de FEITIÇO é uma história comum a muitos vocábulos: após dois séculos de vida no país, emigra para França em 1605, sob a forma de FÉTISSO. De França a Inglaterra, um salto sobre o Canal, e FÉTISSO E FÈTISSERO instalam-se, sob a mesma forma, no léxico inglês.
É correntemente aceite a versão francesa da galicização do termo, que, em 1669, se transformaria em FÉTICHE o qual, por sua vez, emigraria para Inglaterra, que se limitaria a anglicizar-lhe a grafia, para FETISH, e…para Portugal, em 1873.
Na realidade, outra palavra tinha nascido no léxico português, como no francês e no inglês.
FETICHE é agora, em português, um objeto a que se presta culto, a que se dedica um interesse obsessivo ou irracional, gerador de atração sexual compulsiva, objeto de perversão sexual.
Segundo o dicionário francês Petit Robert, porém, FÉTICHE era, já no século XVII, o nome dado pelos brancos aos objetos de culto das civilizações ditas primitivas. E acrescenta: “Em África, objeto animal, vegetal ou mineral com poder sobrenatural, benéfico ou malévolo”.
Este novo sentido, justificaria a opinião dos que, sem explicações, defendem como origem de FETICHE a Guiné onde FETISSO e FETISSERO, introduzidos no século XV pelos colonizadores portugueses, eram, no século XVII, respetivamente o deus e o sacerdote da religião indígena o que comprovaria que, sem sombra de dúvida, o tão português FEITIÇO é, na verdade, também ele, um vocábulo de sete partidas.
 
 
 
Adaptado do artigo  De Feitiços, feiticeiros e de um vocábulo das sete partidas , de Maria Vila Fabião, in Revista Tempo Livre, nº227, Junho 2011, www.inatel.pt

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